sábado, 23 de maio de 2009

Um jogo de azar ou de sorte?

Paula Taísa Steffenon

Muitas coisas que acontecem nos lembram de quando éramos crianças. Hoje mesmo, indo para a faculdade, avistei um senhor vendendo algodão-doce na Praça Marechal Floriano e lembrei que toda vez que meu pai ia para o centro da cidade ele sempre trazia alguma coisa para mim. E eu ficava aguardando sua volta. Quando o carro dobrava a esquina, eu corria para a frente de casa, curiosa, esperando a sua chegada. Às vezes trazia algodão-doce, sorvete seco que vinha com um balão em cima, balas em formas de animais, carros, os weiffer que tinham a imagem do Fofão (personagem de um programa infantil) na embalagem, e outras guloseimas que toda criança adora. Lembro que sentava na escada e me deliciava com o que tinha ganho, sem me preocupar com o tempo, com o que tinha para fazer depois. Aliás, às vezes me preocupava com o tempo, sim, mas com o tempo para brincar. Os anos passaram, hoje já estou na faculdade e é muito diferente. Tenho que me preocupar com tudo. Longe dos pais, tenho que pensar no que vou comer, nas roupas que esperam para serem lavadas, no dinheiro que tenho e o que posso gastar, no trabalho da faculdade que tenho que entregar hoje e ainda não acabei. Afinal, um labirinto de coisas que tenho que fazer e, caso não fizer, ninguém vai fazer por mim. É, saudade do tempo de criança, de ouvir histórias que papai contava, do João e Maria, do Chapeuzinho Vermelho, contos que sempre se tornavam mais longos narrados por meu pai, até que eu pegasse no sono. Coisas simples de que agora, vivendo uma vida de adulta, sinto falta. E por incrível que pareça, as aulas de redação com o professor Tiba me fazem viver situações que há muito tempo não vivia e que me lembram os temas de casa, que às vezes deixava por fazer porque era vencida pelo sono. Só que agora não é gramática nem continhas de divisão ou subtração, nem mais sou vencida pelo sono e, sim, perco o sono ao ter que escolher uma pauta: por exemplo a reportagem final do semestre, porque durante a aula não consegui pensar em nada que despertasse meu lado investigativo. Então, não tive escolha, deixei para tema de casa.

A pauta da reportagem

O professor Tiburski (Tiba) nos deu prazo de uma semana para escolher a pauta da reportagem. Portanto, comecei a agir. Amante de histórias e fatos investigativos, fiquei mais atenta ao cotidiano da cidade de Passo Fundo, comecei a observar quem trabalhava na rua, como vendedor ambulante. E por um acaso, passando pela rua Moron, no centro da cidade, vi um homem que me chamou a atenção. Sentado em uma cadeira ao lado de um estabelecimento comercial, ele vende artigos pequenos, como isqueiros, canetas, pilhas, brinquedos e outros objetos que usamos no nosso dia-a-dia. Foi então que, vendo que ele tinha pilhas para vender, lembrei que precisava compra-las, pois o relógio da cozinha estava sem.

Parei e perguntei qual era o valor da cartela com quatro. - É R$ 2,50 moça, vai levar uma? disse o homem moreno. Respondi que sim, queria levar as pilhas. Para a minha surpresa, quando o homem me entregou a cartela de pilhas, debaixo dela tinha um bloquinho amarelo com os números das apostas feitas para o jogo do bicho. Descobri então que ali era um ponto do jogo do bicho e que os objetos que vende é apenas para camuflar o ponto de venda. Paguei ao homem moreno, peguei as pilhas e continuei caminhando em direção ao meu apartamento. Me sentia inquieta com a descoberta que tinha acabado de fazer (uma banca do jogo do bicho camuflada no centro da cidade). Foi aí que surgiu a minha pauta da reportagem. Um jogo que é ilegal, mas em que maioria da população brasileira aposta, “o jogo do bicho”.

As investigações feitas

Estava ciente de que conseguir informações do gerente da banca não seria tarefa fácil para uma estudante de jornalismo, mas resolvi arriscar. Minha primeira atitude foi jogar, pois sabia que tinha acesso fácil para fazer as apostas. Só no quarteirão onde moro descobri que tem quatro bancas de apostas, em duas as apostas são feitas na rua. Mas os pontos são camuflados, por ser um jogo ilegal. Mesmo assim, às vezes os bloquinhos de apostas ficam à vista de quem passa pela rua. Mas os pontos são camuflados, por ser um jogo ilegal. Mesmo assim, às vezes os bloquinhos de apostas ficam à vista de quem passa pela rua. Os outros dois ficam em estabelecimentos comerciais.

Final de tarde, o sol já se pondo, alguns estabelecimentos comerciais já fechando suas portas, decidi dar o primeiro passo para a minha reportagem. Desci as escadas do prédio onde moro e alguns passos a frente, já estava em uma banca do jogo do bicho, onde funciona uma lotérica. Não fazia a mínima idéia de como funcionava o jogo nem quais eram os bichos do jogo. Cheguei ao balcão e aguardei a minha vez de ser atendida. O balconista, um senhor alto, de cabelos grisalhos, estava atendendo um papeleiro, que minutos antes recolhia caixas de papelão da frente dos estabelecimentos comerciais da rua Moron e agora havia parado para arriscar a sorte no jogo. O rosto daquele homem humilde denunciava cansaço do final do dia. Seus olhos eram marcados nas olheiras profundas. Com as mãos calejadas ele tirou do bolso uma nota amassada de R$ 2,00. Deu para o atendente e pediu para fazer um “joguinho”, (se referia ao jogo do bicho). Não consegui ver em que bicho ele apostou nem quais foram os números que ele jogou. Pegou um bilhete amarelo da aposta, colocou no bolso da sua calça jeans, agradeceu e foi embora. Parecia estar confiante em que, desta vez, teria sorte no jogo. Imaginei como seria se esse homem ganhasse no jogo. Talvez ele iria trabalhar menos, iria melhorar sua vida e, de repente, dar uma vida melhor para a família, se é que tinha.

- Moça. Disse o balconista.

“Senti um frio” passar pela minha coluna, quando me chamou. Foi aí que me dei conta de que era a minha vez de jogar. Cheguei mais próximo do balcão e disse:

- Quero jogar no bicho, mas não sei como se joga. O senhor pode me explicar como é?
Ele sorriu e disse:
- Queres aprender então. Olha só, os números dos bichos são de 00 a 99 e cada bicho tem cinco números, como, por exemplo: a borboleta, é o 13,14,15,16; a vaca é do grupo 25 e seus números são, 97,98,99,00 e assim como os outros bichos. Cada um tem seus números, é só escolher e jogar, ou também qual é seu anos, de nascimento? Perguntou o atendente.
- 1987. Respondi.
- Tem muita gente que joga em datas especiais, ano de nascimento e ganha. Disse, ele. Decidi optar pelo ano do meu nascimento, não achei que teria sorte com algum bicho. Arrisquei. Como esse jogo não tem nenhum valor estipulado, fiz uma aposta de R$1,50. O valor apostado foi dividido, na cabeça, milhar, centena e na cabeça e invertido. Tentei a sorte, fiz todas as jogadas possíveis. O moço me desejou boa sorte, agradeci, peguei o bilhete e voltei para casa. O resultado saía pela loteria federal, às 18 horas. Pensei comigo, não entendi muito bem esse jogo, mas vou conferir para ver o que vai dar. No outro dia, ao meio-dia, lá estava eu na frente do balcão olhando para várias planilhas anexadas na parede da lotérica, tentando conferir meu jogo. O moço que estava no balcão me ajudou a conferir, não tive sorte, desta vez deu azar, não acertei nenhuma jogada. Quarta-feira, 8 de outubro, um dia movimentado no centro da cidade, talvez por ser início do mês. A banca do homem moreno “a todo o vapor”, muitas apostas são feitas ali. Enquanto conversava com uma amiga do outro lado da rua, eu observava a movimentação daquele ponto. As pessoas chegavam ali faziam suas apostas e saiam com o bilhete amarelo. Alguns até compravam alguma coisa do que tinha na banca.

E foi nesta quarta-feira que resolvi fazer uma das tarefas mais complicadas da minha reportagem, entrevistar o “gerente da banca”, o responsável por repassar as apostas ao “banqueiro” e o prêmio ao “vendedor”. Fui à lotérica onde fizera a minha aposta, com caderno de anotação em uma mão e gravador outra. Ao chegar à lotérica, vi que o homem grisalho estava atendendo no balcão novamente. Fora ele que me explicara como se joga no bicho quando apostara pela primeira vez e também quem recebe as faturas na lotérica quando faço pagamentos. Me aproximei do balcão e ele perguntou se podia me ajudar. Respondi que de certa forma poderia. Falei que era estudante de jornalismo e que estava fazendo uma reportagem sobre o jogo do bicho e queria entrevistá-lo a respeito.

Resposta, eu já esperava.

- Não, não posso falar sobre o jogo do bicho, é ilegal, não posso. Fui persistente, comentei que era somente um trabalho para faculdade e que não iria ser veiculada na imprensa a entrevista. Não ia divulgar o nome dele nem onde é o estabelecimento, para não comprometê-lo. Ele aceitou, desde que não fosse gravada.

O início do jogo

Segundo jornais da época (Jornal Brasil), o jogo do bicho é uma prática tipicamente brasileira e uma atividade secular. Surgiu no início do período republicano. Na época o senhor de terras e escravos João Batista Viana Drummond precisava melhorar as finanças do Jardim Zoológico, localizado no bairro da Vila Izabel, no Rio de Janeiro e resolveu criar uma loteria. Mandou imprimir nos ingressos os desenhos de 25 bichos e cada dia sorteava um deles. Quem comprasse uma entrada que custava $1.000 réis, ganhava $20.000 réis se o animal estampado no bilhete fosse o mesmo exibido no quadro pouco antes do fechamento do parque. Os 25 bichos sorteados eram o avestruz, águia, burro, borboleta, cachorro, cabra, carneiro, cobra, coelho, cavalo, elefante, galo, gato, jacaré, leão, macaco, porco, pavão, peru, touro, tigre, urso, veado e vaca. Por isso o nome, “ jogo do bicho”. Além dos seus próprios números de identificação, cada animal responde por quatros dezenas, como o avestruz, por exemplo, é o 1 e suas dezenas, 1,2,3,4. A estratégia da loteria deu certo e se espalhou por outros pontos da cidade e, em pouco, por todo o Brasil. Segundo o “gerente da banca”, que vamos identificar como João, “a organização do “jogo do bicho”, preserva uma hierarquia: é composta por banqueiros, gerentes e apostadores. O banqueiro banca a totalidade do jogo e paga a banca, o gerente de banca ou do ponto, como é o meu caso, repassa as apostas ao banqueiro e o prêmio ao vendedor. E o vendedor é quem escreve e faz o intermédio do pagamento entre o apostador e o gerente , é mais ou menos assim que funciona,” diz João. A banca ou o ponto não precisam ter um local fixo para funcionar, em muitas cidade os vendedores ficam nas ruas, sentados em cadeiras, como é o caso do homem moreno que descobri por acaso para fazer apostas. Durante três semanas andando pelo centro. foi possível encontrar sete pontos de apostas sem nenhum esforço, e a maioria em algum tipo de estabelecimento comercial. De acordo com João, dezenas de pessoas fazem suas apostas diariamente na banca e de todas as classes sociais, até pessoas que ocupam cargos importantes da sociedade jogam. Tem comerciantes, empresários e até morador de rua que consegue uns trocados, vêm aqui e fazem um jogo, afirma.

João conta que acontecem três sorteios durante o dia, às 14 h, as 18 h e às 21 h, todos feitos pela loteria do Rio de Janeiro, e nas quartas- feira acontece pela Loteria Federal. É um jogo que apesar de ser clandestino, continua vivo como uma das mais populares tradições culturais brasileiras. Segundo ele só é considerado ilegal porque não gera lucro pro governo, por isso chamado de jogo de azar, mas é só por isso. É um jogo em que qualquer um pode apostar, porque não tem um valor estipulado para as apostas. Tem gente que vem aqui e aposta R$ 5,00, R$ 1,00, varia muito. E tem aqueles que apostam valores mais altos. Se quiser apostar R$20, R$ 50, eu aceito e pro apostador quanto mais alto o valor da aposta, mais ele vai ganhar. O valor das apostas varia de acordo com a época do mês. Segundo João, no início do mês as apostas são mais gordas, com valores maiores e mais pessoas jogam; e mais pessoas jogam; chegando mais pro final do mês, diminui um pouco, mas todo dia são feitas apostas. E tem quem joga toda semana, como a Lucimar. Ela é proprietária de um estabelecimento comercial no centro da cidade. Conta que herdou do pai a prática do jogo, pois ele fazia suas apostas toda semana, ficava observando quais números jogava e quase sempre ganhava alguns trocos. “Serviu de incentivo para começar jogar. Atualmente faço minhas apostas três vezes por semana. Às vezes no sorteio das 14h ou no das 18 h”. Para nossa surpresa, ela nos revelou que na quinta-feira, um dia antes de entrevistá-la, acertara no jogo que tinha feito e ganhara R$ 600. Questionada sobre os truques que faz para ganhar no bicho, ela sorri e fala: - Olha, às vezes me inspiro em sonhos, mas geralmente jogo nos meus números. Tenho alguns números que são ligados a coisas ou acontecimentos, jogo e seguidamente ganho. Não dá para ficar rica, mas ajuda, argumenta Lucimar.

Já a diarista Eloir nunca teve sorte no jogo do bicho. Diz que há alguns anos sempre jogava: sonhava com algum bicho, ia lá e jogava, ou qualquer outro número que achava que ia dar certo. “Mesmo que eram apostas com valores pequenos, comecei perceber que, se fosse somar no final do mês o que joguei, vi que só estava botando dinheiro fora, porque nunca ganhei mesmo. Daí parei de jogar e pra mim isso é questão de sorte, porque meu marido ainda joga e às vezes ganha”. Posso dizer isso também. Durante a semana fiz mais algumas apostas, tentei jogar no rato, no porco, mas só deu azar (perdi dinheiro). Talvez foi daí tenha surgido a expressão “só quem ganha é quem joga”. Mas fica a pergunta:
será um jogo de sorte ou de azar?



ABRIL 2009 Nº18

Os 25 bichos sorteados do jogo: avestruz, águia, burro, borboleta, cachorro, cabra, carneiro, cobra, coelho, cavalo, elefante, galo, gato, jacaré, leão, macaco, porco, pavão, peru, touro, tigre, urso, veado e vaca. E por isso o nome, “ jogo do bicho”. Além dos seus próprios números de identificação, cada animal responde por quatro dezenas, como o avestruz, por exemplo, é o 1 e suas dezenas, 1,2,3,4.

1 comentários:

Wagner disse...

Onde está o Camelo ?