segunda-feira, 14 de junho de 2010

UM OLHAR PARTICULAR SOBRE O IRÃ

Texto Produzido pelo acadêmico do III Nível de Jornalismo da FAC Marcus Vinícius Freitas e publicado no Jornal Pra Ler Edição Nº 22

mmmO Irã viveu anos sobre o poder de outros povos, sofreu com a tirania que assolou o povo por milhares de anos, desde os tempos da antiga Pérsia, em meados de 600 DC. Após os árabes, foram os turcos que estenderam o comando perante os iranianos. Centenas de anos depois, na segunda guerra mundial, americanos e russos se apoderaram do estratégico local e forçaram o Irã a declarar guerra à Alemanha. Após, todos que iam para lá estavam em busca somente de uma coisa: petróleo. Foi então, em meados dos anos 70, que começou a revolução xiita.
mmmDepois de todos esses acontecimentos surgiu Persépolis. O livro, escrito por Marjane Satrapi, não se passa nos tempos antigos, entre os domínios das dinastias ghaznávidas e khwarazamitas. A história de Persépolis se passa nos tempos atuais. Lançado no país pela Companhia das Letras (em 4 volumes e edição completa), a HQ é bem diferente do que se pensa à primeira vista. O mais interessante não é o fato de ser uma biografia em formato de gibi – o primeiro livro em quadrinhos sobre a história iraniana –, mas por praticamente ser uma reportagem, um relato de quem viveu in loco a revolução e o período de estabelecimento do regime xiita no Irã. Além disso, é um ponto de vista feminino, a visão de quem - errônea e injustamente - sempre sofreu um enorme preconceito pela sociedade iraniana.
mmmA narração começa desde a época do colégio, quando garotas e rapazes ainda estudavam juntos. Com o governo xiita, uma nuvem negra caiu sobre as mulheres: várias proibições, regras absurdas e desumanas se aplicaram. Uma dessas leis foi a obrigatoriedade do véu. Em suas lembranças, algumas meninas até não se importavam de usar, mas a grande maioria negava. Sua mãe foi fotografada durante uma passeata contra o acessório, saiu em várias revistas nos Estados Unidos e Europa, algo que lhe orgulha até hoje.
mmmMarji cresceu numa família politizada e de veia revolucionária, que não apoiava tal governo. Teve um avô que fora príncipe, um tio revolucionário que esteve nas linhas de frente pregando o comunismo, e assim por diante. Ainda pequena não entendia e não admitia toda a situação política que se alastrara no país. Lia Marx, procurava entender as entrelinhas dos acontecimentos que se davam. À noite, procurava conversar com deus sobre o que via nas ruas. mmmNão entendia e não admitia aquela negra tempestade de conservadorismo que pairou em sua nação. Anos depois, com quatorze anos, ela é mandada pelos pais para a Áustria pelos seus pais. Assim como todo adolescente, ela passa pelo turbulento período de dúvidas e questionamentos que são comuns nessa época da vida, com a diferença de estar sozinha num país estranho. Aos vinte e poucos anos, Marji retorna à sua terra natal, onde ingressa numa escola de artes e decide lutar contra o que acontece por lá. Mas a vivência no Irã se torna insustentável em todos os sentidos. Então, com muita esperança na bagagem, ela ruma em direção a França para uma nova vida.
mmmUm retrato de todo o transtorno que a guerra, independente de suas motivações, causa numa sociedade, é isso que a autora pincela no preto e branco nas páginas. A manipulação de um povo serve para Através da história de sua vida, Marjane conta o andar deste processo, os vários governos, ideologias e a troca de costumes em seu país. Aliás, um dos costumes era o mercado negro de fitas. Até os dias atuais, continua proibido no Irã a veiculação da maioria dos filmes que são lançados. Por mais irônico que soe, a versão cinematográfica da HQ deve ter esse destino em seu país de origem, o que não é nenhuma novidade para Satrapi. “Eu era tão acostumada com esse mercado negro que não o vejo como algo estranho ou peculiar. Aquele era um período da minha vida - as coisas que eu queria só existiam naquele mercado negro. Acho ótimo que agora farei parte dele”, disse em entrevista para o Omelete.
mmmA autora ainda estabelece uma relação muito especial entre mundo e linguagem. Para ela, a imagem é, de fato, a única linguagem internacional. “O primeiro escrito de um ser humano foi um desenho, não uma escrita. Isso apareceu muito antes do alfabeto”, disse em entrevista para o site Powells Book. Ela ainda completou: “Quando você desenha uma situação – alguém assustado, brabo ou feliz –, isso significa a mesma coisa em todas as culturas. Você não pode desenhar uma pessoa chorando e, em outra cultura, isso significar que ela está feliz. Há algo direto sobre a imagem.”
mmmE ela, a imagem, é a complementação ideal da trama. De certa forma, o preto e branco tira a datação do tempo em que ocorre o livro, tanto que sua história é muito atual. Os simples, porém precisos e cativantes traços desenhados por Satrapi também chamam a atenção do leitor, dando a tom ideal para o misto entre biografia e reportagem. Afinal, quem poderia dar um depoimento, um relato mais preciso e isento de influências externas do que alguém que cresceu assistindo dentro de sua casa, na frente de sua rua, no centro de sua cidade? Sua posição contrária ao governo estabelecido também é uma tônica de sua biográfica reportagem.
mmmMas Persépolis não é apenas violência, revoluções culturais e a tristeza. Há bastante humor e diversão nas situações em que Marjane se envolve e no modo como ela enxerga as coisas, quebrando um pouco o clima de tensão que se desenvolve. No meio do furacão em que a pequena Marji se encontrava, diante toda aquela abrupta mudança de culturas e vida, ainda era possível ter motivos para sorrir.

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